domingo, 26 de junho de 2011

A Borracharia



"Tudo evolui no Brasil. Menos a borracharia e o Stédeli. Mas não vamos falar do último. Nos fixemos das borracharias. Já notou? São exatamente iguais às borracharias da nossa infância, quando íamos lá com nossos pais. Inclusive os borracheiros parecem ser os mesmos. Parecem feitos de borracha, não envelhecem.


Há algumas décadas não devem mais nascer garotos que dizem: vou ser borracheiro quando crescer. Para cada borracharia existem dois borracheiros. Um mais velho (que é para quem você vai pagar no final do serviço) e o mais jovem, que é quem pega duro.

Duvido que alguém já viu uma borracharia limpa. Para ser uma boa borracharia ela deve ser imunda. Não é suja, é imunda mesmo. Assim como os borracheiros. Eles não lavam as calças e as camisetas há séculos.

Não há lugar para se sentar. Jamais. Você tem que ficar em pé esperando o serviço. E acompanhando atentamente.

A coisa começa na porrada, literalmente. Um super-martelo e o cara bate pra valer no nosso pneu para tirar a câmera de ar e, com uma alavanca vai girando o pé com uma maestria invejável. E tira para fora aquela coisa mole, cinza, morta. E furada.

Todas as borracharias têm a sua banheira, é claro. Uma banheira que um dia – imagino – foi branca. Se você quer saber a cor de um burro quando foge, é aquela ali. Entre cinza e marrom. E a água onde vai ser enfiada a câmera de ar? Que cor é aquela? E onde foi que o sujeito arrumou a banheira? Comprou especialmente para aquele serviço, aquela serventia? Mas é eficiente. Logo vemos as bolhinhas de ar subindo pelo furo. O borracheiro coloca o dedo no furinho e te olha. Apenas olha. Todo mundo entende aquele olhar.

Neste momento eu pergunto: os pneus já existem há mais de cem anos. Ninguém se deu ao trabalho de inventar uma outra engenhoca para descobrir onde fica o furo?

Aí ele saiu pingando com a nossa câmera de ar pelo chão, notadamente nos nossos sapatos. Enxuga. Coloco numa máquina de tortura, passa uma cola e junto um pedacinho de borracha. Comprime aquilo. Chega a doer. Aquilo esquenta, sai fumacinha.

É o momento de olharmos as mulheres peladas (e já sujas) pelas paredes. Calendários dos anos 90 e até oitenta. Mocinhas que hoje já devem ser avós, ali, testemunhas discretas de nossos furos.

Tem também um jornal de esportes do dia por aqui, cheio de impressões digitais. Não dá mais para ler as notícias que ficam à direita e à esquerda da página. Sentar, nem pensar. Agora ele enche de novo a câmera. Mais do que a gente imagina. A impressão é que aquilo vai estourar no nosso rosto. Mas – incrível – não estoura.

Enfia lá dentro de novo. Enche pela terceira vez. Ao se ajeitar lá dentro, a borracha dá um inesperado estouro e se acomoda. Coloca o bico no lugar. Pega um aparelhinho e vê a pressão. Tudo isso muito rápido, com muita eficiência, sem cursar nenhuma faculdade. Mas você sente que o cara é competente, é pós-graduado.

É aí que ele pega o nosso estepe e balança a cabeça negativamente. Você entende, o estepe está mesmo pela hora da aposentadoria. Negocia ali na calçada enquanto coloca o pneu no lugar. Você acaba comprando outro estepe.

Mas só quando você chega em casa é que você percebe que também está todo sujo, apesar de não sentar e nem encostar em nada.

E pensa naqueles dois que te salvaram a vida. Admiro estes homens. São meus heróis. Ao contrário do Stédeli, eles não precisam evoluir. Pra que?"

{Mario Prata}

terça-feira, 21 de junho de 2011

"A Última Crônica”

Fernando Sabino


"A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.



A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência,


que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico,


torno-me simples espectador e perco a noção do essencial.


Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.


Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.


Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.


A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.


São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa.


A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura -- ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido -- vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso. "





Texto extraído do livro "A Companheira de Viagem", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 174.